Na velha casa de madeira, ainda enxergo a mãe mexendo nas panelas. Ela caminhava ao redor do fogão e mantinha o olhar focado para não perder o ponto de cada alimento. Meu pai ficava sentado sempre na mesma posição. Era ele quem enchia a cuia e cuidava do abastecimento da lenha. Domingo era diferente só por isso. Os pais estavam em casa com os filhos, já que não era dia de ir à roça e, para completar, a sobremesa anunciava a comemoração. Meu mano mais velho ficava com a colher em punho, esperando pelas panelas onde a mãe preparava os doces. É que, depois que ela despejava o sagu e o creme de leite na travessa, estávamos autorizados a raspar as sobras. Unidos, torcíamos pela generosidade da mãe. Sozinha, eu planejava ocorrências que poderiam tirar o meu irmão da parceria. Uma dor de barriga inesperada, ou até mesmo uma ferroada de abelha.
Por conta das nossas brigas, a mãe resolveu organizar a atividade. A gente se desentendia porque um raspava mais rápido do que o outro e isso supostamente gerava vantagens para o mais apressado. Com uma colher, a mãe passou a traçar uma linha em cada panela delimitando a propriedade. A divisa deveria ser respeitada. Aquele que ousasse avançar além do seu espaço, perderia o direito. Ainda assim permaneciam alguns estranhamentos com o sagu, que escorria e acabava apagando a marcação. Mas a mãe não arredava o pé até que a gente devolvesse a panela. Ficava ali, vigilante. Tinha paciência para ensinar a lição.
Na última semana, estou cuidando da minha neta em mais horários. Tenho tido dificuldade para convencê-la de que ela deve usar outro calçado que não seja o crocs da Minie. Posso até escolher as roupas, mas, na hora de colocar o sapato, a guria não arreda o pé da sua insistência. Ela tem apenas dois anos e já deseja ter o controle da situação. Por conta disso é que lembrei da história do sagu e do creme de leite. A linha é sempre muito tênue entre ser uma pessoa grande diante da criança e impor silêncios por conta disso, ou fazer o lugar de um adulto referência que acolhe os desejos da criança, mas que é capaz de dar limites.
Texto por Dirce Becker Delwing, jornalista, psicóloga e psicanalista clínica.