Nem as pessoas nem os países deveriam ficar velhos antes de ficarem sábios

Professora Ivete Kist analisa o cenário atual a partir de uma peça de Shakespeare e afirma que "o bobo da corte do Rei Lear tinha razão"


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Professora Ivete Kist é a titular do quadro “Um Outro Olhar” (Foto: Tiago Silva)

Uma das peças de teatro que o inglês William Shakespeare escreveu tem como título “Rei Lear”. Ali se conta a história de um rei e suas três filhas. O rei está cansado e quer passar o trono para elas. As duas mais velhas ficam muito animadas e se derretem em declarações de amor ao pai. A filha mais jovem é mais comedida. Diz que ama o pai, mas que o seu amor se divide entre o pai e os outros afetos dela. O rei não gosta de ouvir que não é tudo na vida da filha e acaba deixando o trono só para as mais velhas.

Uma vez ocupando o trono, as duas filhas vão esquecendo o pai e pouco a pouco o abandonam. Não fosse a filha mais nova socorrer, o rei passaria muito mal. Ao perceber o que acontecera, o rei Lear se lamenta amargamente com bobo da corte. Aí o bobo acerta um comentário na mosca.

O bobo diz assim: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.
A sentença se aplica a todo o tipo de situação. Aplica-se à nossa vida pessoal e se aplica também à vida em comunidade.

Às vezes, parece que nosso país igualmente aumenta a idade sem conseguir ficar mais sábio.

Neste ano se comemoram os 200 anos da independência do Brasil e ainda não aprendemos que a independência é coisa para construir permanentemente. Não basta erguer a espada e gritar uma frase. Nenhum país é independente, enquanto fica refém do conhecimento produzido fora. País independente tem de produzir conhecimento e beneficiar-se do conhecimento que produz.

Rei Lear é uma tragédia teatral de William Shakespeare, considerada uma de suas obras-primas (Foto: Reprodução)

Me lembrei disso ao ler a reportagem sobre uma pesquisa que a Universidade Federal de Pelotas desenvolve há quarenta anos. A pesquisa começou em 1982 pela mão de dois médicos, o pediatra Fernando Barros e o epidemiologista Cesar Victora e continua até hoje. A proposta inicial do estudo era acompanhar o crescimento dos 5.914 bebês que vieram ao mundo naquele ano no município, para verificar consequências da desnutrição e agir sobre a mortalidade infantil. Com o passar do tempo, a pesquisa foi recolhendo informações cada vez mais abrangentes.

Os achados da pesquisa foram extraordinários. Provaram, por exemplo, a importância do aleitamento materno e o caráter decisivo dos primeiros mil dias de vida. Foram responsáveis por gerar políticas públicas no Brasil e em outra dezena de países.

Bom, a continuidade desta pesquisa está ameaçada pela falta de recursos. Talvez venha a ser interrompida. Alguns pensam que fazer pesquisa é rasgar dinheiro. Como o resultado não vem em curto prazo, parece mais barato comprar tudo pronto de fora.

Enfim, o bobo da corte do Rei Lear tinha razão. Nem as pessoas nem os países deveriam ficar velhos antes de ficarem sábios.

Texto por Ivete Kist, professora de Letras e Literatura


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