O dia em que o barulho do helicóptero perdeu a graça

Tamara Bischoff faz uma reflexão sobre a brincadeira do resgate que virou uma realidade no Vale, e num instante, perdeu completamente a graça


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Foto: Carolina Leipnitz/Rádio Independente

Nos últimos cinco anos, sempre que um helicóptero passava por cima da minha casa, o clima era de entusiasmo, de correria para vê-lo. Isso começou quando a Lívia, minha filha, tinha alguns meses de vida.

Como acontece com a maioria das crianças, sempre que escutava aquele som vindo do céu, seus olhinhos buscavam uma explicação. Para facilitar as coisas, já que a curiosidade era ainda superior à destreza motora, pegávamos ela no colo e corríamos até o jardim para localizar o responsável por aquele som tão interessante. Ele ganhou até nome próprio, na língua dela – e na nossa – passou a se chamar “beicám”.

A coisa ganhou uma proporção daquelas que só quem tem filho talvez entenda. Mãe e pai, parecendo loucos, correndo com a criança cada vez que um helicóptero apontava no céu. Às vezes, tínhamos que ser extremamente rápidos. Na hora do almoço, se ouvíamos o som ao longe, um de nós corria pra abrir a porta enquanto o outro soltava a trava e a tirava da cadeirinha. Era uma mistura de corrida com obstáculos e de revezamento.

Lívia foi crescendo e a brincadeira se transformando. Inspiradas em um desenho infantil, começamos a encarnar as “perdidas na selva”. O helicóptero passava e nós gritávamos por resgate. Para nossa sorte, nunca fomos levadas a sério.

Mas teve um dia que os helicópteros, que antes eram raros por aqui, começaram a passar numa frequência maior. No outro dia, a coisa se repetiu. A brincadeira do resgate virou realidade, e num instante, perdeu completamente a graça.

Cada voo em busca de sobreviventes das cheias que assolaram o Vale do Taquari neste setembro de 2023 virou, para mim, um misto de medo, de esperança, de angústia. Cada voo era um lembrete, impossível de ignorar, de que a coisa estava séria.

De uma hora pra outra, não era mais “o beicám” que passava por cima de nossa casa. Nem precisei dizer nada para a Lívia; o olhar dela para o helicóptero disse tudo. “Mãe, quando eu crescer, quero ser super heroína, daí vou salvar todas as pessoas”.

Ah, filha, que bom que a dureza da realidade não matou também tua fantasia. Sonhe! E nos ajude a sonhar, porque precisaremos sonhar juntos!

Por Tamara Bischoff

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