O incômodo com a parede encardida da casa ao lado

Afinal, ao reparar os encardidos das paredes alheias, tiramos a atenção dos nossos próprios mofos


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Tenho uma moradia em Porto Alegre. Quando estou lá, frequento um salão de beleza que fica num bairro onde há moradias e, também, estabelecimentos comerciais. Todas as vezes em que sento diante da manicure, dou de cara com uma janela da qual a gente enxerga a parede da casa vizinha. Acontece que essa parede está bastante suja, com manchas de embolorado e teia de aranha. Nessa hora, fico me imaginando num verdadeiro mutirão de limpeza. Chego a organizar mentalmente a atividade. Pego um balde, coloco detergente, escovo com uma vassoura de cabo longo e passo uma mangueirada de água. Se contasse isso para meu analista, bem possível, ele diria que a mania de limpeza diz muito mais sobre mim do que qualquer outra coisa.

Outro dia, cheguei a perguntar para uma das atendentes do salão se ela também gasta tempo com a parede encardida. Ela jurou que nem tinha prestado atenção nisso. Já a outra funcionária contou que, quando começou a trabalhar no local, até se incomodava, mas que, com o passar do tempo foi fazendo vistas grossas e que, hoje em dia, nem repara mais.

Os moradores da casa de madeira não devem fazer a menor ideia de que a parede lateral da moradia está tão suja, até porque não fica visível para eles, a não ser que olhem pela janela do prédio ao lado. Considerei que alguém poderia avisá-los sobre a situação. Quem sabe, uma pessoa intrometida ou um bom samaritano que gostaria de poupá-los de possíveis constrangimentos. Pelo menos, esse seria o argumento pra ficar dando pitaco na vida dos outros. Aquele tipo de conversa onde a pessoa diz algo como: Só te aviso porque quero teu bem, porque sou tua amiga.

Caso isso acontecesse, previ algumas reações que os moradores poderiam ter. Talvez ouviriam tudo com desdém, balançariam os ombros, dando a entender de que, aquele que está incomodado, que faça a faxina. Outra possibilidade seria de que ficassem gratos pelo aviso e, assim, providenciariam a limpeza. E teria ainda uma terceira conduta possível: seriam gentis, fariam “sim” com a cabeça e tudo ficaria por isso mesmo.

Estava em meio à reflexão quando chegou a minha vez de ser atendida. Antes de me sentar, ainda tive tempo para dar mais uma espiada pela janela. Afinal, ao reparar os encardidos das paredes alheias, tiramos a atenção dos nossos próprios mofos.

Texto por Dirce Becker Delwing, jornalista, psicóloga e psicanalista clínica

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