A suposta alegria duradoura dos ricos

Quantas vezes, deixamos de fazer algo que gostaríamos muito de fazer porque pensamos que aquilo não é pra nós


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Foto: Fernanda Kochhann

Naquele dia, quando chegamos à casa comercial que ficava no caminho da escola, a moça que trabalhava no estabelecimento chamou a gurizada e mostrou um amontoado de calçados. Na verdade, eram tamancos de madeira, daqueles que as pessoas usavam antigamente. Suponho que estavam fazendo uma organização e viram que ninguém mais compraria aquele tipo de produto. Ao invés de descartar, ofereceram para a gurizada. Quem sabe, alguém gostaria de viver a experiência de ouvir o toc-toc do solado.

Quando chegou a minha vez de escolher, fiz bem rápido para dar lugar às outras crianças que ainda não tinha pego o seu par. Nem provei direito. Assim que chegasse em casa, seria a hora de desfilar diante dos meus pais. Era capaz de imaginar a alegria deles por conta do meu estado de contentamento. Devo ter começado a sorrir muito antes de entrar pela porta da cozinha, que é onde meus pais ficavam no final da tarde. Enquanto contava a história para eles, fui tirando o presente da sacola. Coloquei no chão, tentei encaixar os pés e, nessa hora, meu mundo caiu. Vi que tinha pego dois tamancos do mesmo pé. Devo ter chorado compulsivamente. Meu pai, que até então não tinha manifestado nenhuma reação, disse em tom conclusivo:

– Alegria de pobre dura pouco.

Não lembro o que aconteceu depois. O fato é que a fala do meu pai fez com que eu me conformasse. Nem ao menos perguntei para os outros alunos se alguém também tinha ficado com dois calçados do mesmo pé. Em caso afirmativo, poderia ter feito a troca. Contudo, se a alegria teria um prazo de validade, a minha conta já tinha fechado e eu devia me conformar. Talvez as coisas boas não fossem mesmo para mim.

Quantas vezes, deixamos de fazer algo que gostaríamos muito de fazer porque pensamos que aquilo não é pra nós. Abraçamos a nossa suposta falta de sorte e não nos movimentamos para mudar a nossa situação. Quantas vezes, atribuímos os nossos azares a fatores externos, quando, na verdade, fomos nós que geramos aquele resultado. Cheguei em casa com dois tamancos do mesmo pé porque não olhei direito na hora de escolher.

Não quis demorar. Na hora, não suportei o empurra-empurra das outras crianças que queriam se aproximar do amontoado de calçados. Me apressei para não chatear ninguém. Quantas vezes, nos mais diversos contextos, nos recolhemos e não usufruímos das benesses do momento. Afinal, em algum lugar do passado, entendemos que a alegria somente seria duradoura para os ricos.

Texto por Dirce Becker Delwing, jornalista, psicóloga e psicanalista clínica 

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