Felicidade e fúria

O futebol virou o último refúgio do animal que continuamos sendo


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Professora Ivete Kist (Foto:Arquivo Independente)

Agatha Christie, a insuperável escritora de romances policiais, coloca uma boa frase na boca do seu detetive Hercule Poirot. Conversando com um conhecido, Poirot larga esta pérola: “O homem foi obrigado a inventar o trabalho para fugir do martírio de ter que pensar.”

É ou não é uma boa frase?

Aqui, diante da TV, acompanhando a transmissão de jogos da Copa do Mundo, faço uma emenda na frase de Poirot. Acho que foi para não pensar nem trabalhar que o homem inventou o futebol.

A minha contribuição à fala de Poirot pode ter ficado engraçadinha, mas não se aplica ao pessoal diretamente envolvido no metiê: jogadores, comissão técnica, jornalistas. Esta gente, muito pelo contrário, puxa pelo pensamento e trabalha cada vez mais. É visível a sofisticação crescente na preparação dos atletas e no planejamento de táticas de jogo. Estudam-se todos os ângulos possíveis e à exaustão. Ensaiam-se jogadas, combinam-se passes, delineia-se o plano A, o plano B… O vestiário busca imitar a precisão cirúrgica.

Os jornalistas pulsam na mesma vibe. A narração de jogos não se faz mais no improviso. Os caras falam com o auxílio de dados arrolados em planilhas. Registros da história das partidas entram na conversa. Esse foi o quinto lançamento do jogador para aquele lado e em xis por cento das vezes, nas situações similares, o arremesso resultou em gol. Quando alguém chuta um pênalti, ficamos sabendo do aproveitamento do seu time desde os albores da competição. Tudo é medido e comparado.

As chances de vitória certamente interessam também aos investidores, que ocupam ou não os espaços comerciais. Posso quase visualizar esse pessoal dormindo com tabelas estatísticas sob o travesseiro.

Os torcedores, não. Os torcedores existem fora desta lógica. Ao redor do mundo, os torcedores se irmanam numa alegria irracional.  A alma dos torcedores alcança a alforria e corre solta como a bola.

As plateias despem o verniz civilizado. Soltam urros tal qual leões nas selvas.
Os torcedores ficam liberados. Podem suspender a fachada séria e só viver a hora. Podem se jogar de corpo inteiro, cair de boca, subir aos céus ou se estatelar no barro. Tanto faz.

Os torcedores ganham direito de sonhar lances milagrosos e de gritar instruções que jamais serão ouvidas. Ninguém estranha que os torcedores inventem figurinos impossíveis e que topem sair vestidos de ridículo.  Os torcedores ganham credencial para dizer besteiras e para verter todas as lágrimas guardadas.

O futebol virou o último refúgio do animal que continuamos sendo. Desvencilhados do trabalho e da necessidade de pensar, os torcedores gozam um sol de liberdade.  Não admira, pois, que a cada quatro anos, a Copa reúna esse assombro de felicidade e fúria!

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