O complexo de vira-lata e tendência de nos colocarmos em posição de inferioridade

A comparação do povo brasileiro com o vira-lata deveria ser tomada como elogio


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Ivete Kist (Foto: Nícolas Horn)

Gaúchos dizem que dão um boi para não entrar numa briga e, depois, uma boiada para não sair.  O dito pode ser engraçadinho, mas é certo que algumas brigas são mesmo indispensáveis. Uma dessas é a que envolveu o jogador Vinícius Júnior, naquela partida do Real Madrid contra o Valencia, em 21 de maio. Os fatos ocorridos abriram debates de todo o tipo e nos dão chance de pensar bastante.

Ponto número um: a inconformidade manifestada pelo jogador mostra que palavras ou piadas têm o poder de golpear fundo. Como diz a minha querida amiga negra, a Rosane Cardoso: “O corpo negro é uma ferida aberta”. É impossível não sangrar com o deboche.

Ponto número dois: a mobilização em torno do caso é positiva. Mostra que muita gente começa a perceber que mesmo brincadeiras muito populares não são inofensivas. Dizem alguns: Os jogadores brasileiros fazem sucesso no mundo, mas não se livram do complexo de vira-lata. Se alguém os destrata, eles latem. Agem como se fossem inferiores mesmo. Não fosse assim, nem dariam bola. Opa! Hora de superar a ideia da raça superior pura e… das outras.

Isto puxa para cá o tema do vira-lata.  “Complexo de vira-lata” é uma expressão cunhada pelo escritor Nelson Rodrigues em seus comentários sobre futebol. Segundo Nelson, o trauma da derrota para o Uruguai, em 1950, deixou sequelas entre os jogadores brasileiros e, por extensão, em todos os habitantes do país. Isto significa que temos a tendência a nos colocar, voluntariamente, em posição de inferioridade face os estrangeiros. Para dar forma visível a esse sentimento de desvalia, Nelson Rodrigues, faz a comparação com o vira-lata. O vira-lata representaria o povo brasileiro. Seríamos uns pobres-diabos. Nunca alcançaríamos o status de cachorro respeitável – nem de cachorrinho de madame. Esta é a tese de Nelson Rodrigues.

Vou, então, fazer a defesa do vira-lata. Neste ponto acompanho o pensamento do economista Eduardo Giannetti. A comparação do povo brasileiro com o vira-lata deveria ser tomada como elogio. É só olhar para as características que o cachorro de rua tem. Começa que é resultante da mistura de raças. Surge daí um animal forte, criativo, leal e alegre, com notável capacidade de comunicação e de afeto.

Ah! E como todo o cachorro bom, só morde em legítima defesa. Quer dizer, é possível aplaudir a comparação do vira-lata com o povo brasileiro. Além do mais, cá entre nós, o gosto por enaltecer a pureza de alguma raça já deu problemas demais para a humanidade. Quantas guerras se fizeram em nome disso? Misturar-se e cooperar são valores construtivos. A convivência pacífica dos diferentes é exatamente o que fortalece a comunidade. Com toda a razão, o Sicredi diz que quem coopera cresce.

Alguém pode achar que foi de vira-lata a reação de Vinícius Júnior. Eu prefiro achar que foi coisa de cachorro bom.

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