Entenda por que a enchente de 1941 não foi tão grande como se acreditava em Lajeado e Estrela, segundo um novo estudo

Se a enchente de 1941 se repetisse hoje e fosse medida no Porto de Estrela, o pico chegaria a 28,87 metros. Esse nível é 66 centímetros a menos do que a cota máxima observada no dia 5 de setembro de 2023 — 29,53 metros


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Foto: Acervo Histórico

Com a magnitude da enchente de setembro de 2023, uma impressão se espalhou no senso comum da comunidade regional: a que essa cheia do Rio Taquari foi maior do que a enchente de 1941. Embora tenha atingido 29,53 metros no Porto de Estrela, abaixo do número atribuído ao evento de oito décadas atrás (29,92 metros), o ‘relato dos antigos’ e marcas como a régua no prédio do Ceat — feito respeitando a cota de 1941 — sugerem o contrário. Segundo essa leitura, a tragédia do ano passado, que matou 52 pessoas e deixou um rastro de destruição, é maior em volume d’água.

Para sanar essa controvérsia, um grupo de pesquisadores ligados à Univates, à UFRGS e ao Serviço Geológico do Brasil (SGB) foi a campo e produziu um estudo técnico denominado “Revisão e consolidação da série histórica dos níveis das cheias do Rio Taquari em Lajeado de 1939 a 2023”. O material comprova, segundo eles ‘inequivocamente’, que a crença popular está certa. Sim, o evento climático de 2023 foi maior.

O trabalho é assinado pelos professores da Univates Sofia Royer Moraes e Rafael Rodrigo Eckhardt, assim como pelo professor Walter Collischonn (UFRGS) e Franco Turco Buffon (SGB).

A nota técnica, com riqueza de detalhes, mostra que a cheia de maio de 1941 não foi tão grande quanto se tinha registro até então, numericamente falando. Isso quer dizer que não chegou aos 29,92 metros na cota do Rio Taquari em Lajeado e Estrela. Esse dado não foi aferido no Porto de Estrela, também não foi medido no antigo ponto com réguas manuais em Lajeado, e não guarda relação com o nível do mar (a altitude ortométrica com o zero na elevação média do oceano).

Para chegar a essa conclusão, foram revisadas informações da série histórica, iniciada em 1939. Como a posição do sistema de monitoramento mudou ao longo do tempo, os estudiosos fizeram a equivalência e o ajuste — enchente a enchente — a partir da altitude ortométrica para descrever qual episódio foi maior.

Arte: Grupo Independente

Entenda, abaixo, como cada lugar com réguas ou sensor é relevante e, após, saiba como isso faz toda a diferença para chegar à leitura mais correta do nível da água em diferentes cheias.

Na história das medições do Rio Taquari em Lajeado e Estrela, os números sistemáticos foram colhidos em três posições diferentes — dois deles em Lajeado, e um em Estrela.

  • em Lajeado, de 1939 a 1960, as réguas linimétricas estavam na altura da esquina da Rua Osvaldo Aranha com a Rua Silva Jardim, na parte mais baixa do Centro da cidade.
  • depois, foram para cerca de 400 metros de distância, perto da foz do Arroio Saraquá, na Avenida Beira-Rio, em Lajeado. Ficaram ativas de 1961 até 1986.
  • e de 1977 até agora, ocorrem medições no Porto de Estrela, referência para Lajeado e Estrela. Neste ponto, a medição foi manual até 2015, quando o Serviço Geológico do Brasil instalou sensor digital com transmissão via satélite.

Adicionalmente, depois da grande enchente de 2020, com cota 27,39 metros, também foram colocadas réguas na margem oposta ao porto, do lado de Lajeado, em 2021.

Essas posições de medição têm o zero de régua (onde ela começa no fundo do rio) com altitudes diferentes entre si e em relação ao nível do mar. Isso impacta diretamente na comparação entre as cheias ao longo da série histórica. Por isso é necessário fazer uma equivalência a partir do nível do mar, que leva em conta a soma do zero da régua com a diferença da altura da régua para o oceano.

Diferença do zero da régua para o nível do mar:

  • +5,60 metros de 1939 a 1960, na 1ª posição das réguas em Lajeado
  • + 6,60 metros de 1961 a 1986, na 2ª posição das réguas em Lajeado
  • -0,55 cm de 1977 até agora, no Porto de Estrela, nas réguas manuais e no sensor digital
Arte: Grupo Independente

Traduzindo: quando uma enchente chega a 25 metros no Porto de Estrela, corresponde a 24,45 metros na altitude tendo como base o oceano, porque desconta-se esses 55 centímetros.

Com isso é possível dizer que em 1941, o nível máximo visível no sistema de medição instalado em Lajeado, na altura da Osvaldo Aranha com a Silva Jardim, foi de 22,72 metros a partir do zero da régua, o que equivale a uma altitude ortométrica de 28,32 metros em relação ao nível do mar, somando os 5,60 metros. Os autores afirmam que esta é a estimativa mais consistente.

Dessa forma, se a enchente de 1941 se repetisse hoje e fosse medida no Porto de Estrela, o pico chegaria a 28,87 metros. Esse nível é 66 centímetros a menos do que a cota máxima observada no dia 5 de setembro de 2023 — 29,53 metros. Já em relação ao nível do mar, a tragédia de setembro alcançou 28,98 metros de altitude ortométrica, contra 28,32 metros de 1941 — também -0,66 cm.

Arte: Grupo Independente

A estimativa equivocada

Mas, então, de onde saíram os tais 29,92 metros de cota de enchente na cheia de 5 de maio de 1941? Conforme os pesquisadores, foi aplicado uma diferença do zero da régua para o nível do mar de +7,20 metros (ou seja, 22,72 m + 7,20 m = 29,92 m), que está em desacordo com a diferença correta da época aferida em Lajeado, que seria de +5,60 metros.

E de onde saíram esses +7,20 metros? Da soma da diferença entre o zero das réguas de Lajeado instaladas até 1986 (+6,60 metros) com o zero da régua do Porto de Estrela (-0,55 centímetros), que chegaria ajustadamente aos +7,20 metros. Este dado foi adicionado aos 22,72 metros para chegar à cota atribuída à inundação de 1941 (29,92 metros).

A conclusão dos pesquisadores da Univates, da UFRGS e do SGB é de que cheia de setembro de 2023 foi maior em 66 centímetros em Lajeado e em Estrela, quando se faz os ajustes necessários para que ambas fiquem enquadradas em níveis de referência iguais.

De modo que resta a afirmação: a enchente de setembro de 2023 é a maior elevação do Rio Taquari desde pelo menos 1873, quando possivelmente teria ocorrido uma enchente maior em Lajeado, segundo relatos não confirmados numericamente.

Já no pilar do prédio do Ceat, no Centro de Lajeado, o evento climático do ano passado foi 51 centímetros superior há 83 anos, e igual à inundação de 18 de novembro de 2023. Uma curiosidade apresentada na nota técnica é que a declividade da água é de 30 a 40 cm por quilômetro.

Vista lateral do pilar e do prédio do CEAT onde estão as marcas das inundações históricas, destacando a mancha de umidade resultante da inundação de 5 de setembro de 2023 (Seta 1), localizada 51 cm acima do limite superior da viga branca, que representa o local em que está marcado nível máximo da inundação de 5 de maio de 1941 (seta 2) (Foto: Estudo técnico)

Informações que chamam atenção

  • A série histórica de 1939 até 2023 mostra uma média de pelo menos duas cheias por ano acima da altitude ortométrica de 17 metros.
  • Somente em 15 anos (1943, 1947, 1952, 1962, 1968, 1969, 1978, 1981, 1984, 1986, 1995, 1996, 1999, 2004 e 2021) não foram registradas enchentes superiores a 17 metros, A inundação leva à interdição de ruas e força a remoção de famílias quando a cota se aproxima dos 19 metros.
  • Os anos com mais enchentes foram 1983, 1984 e 2023, com sete eventos acima de 17 metros.

Texto: Tiago Silva
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