O medo não é tolo

Entre os destroços que remanescem da enchente se encontra o medo


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Foto: Freepik

Já se falou muito sobre a enchente que se assolou o estado no início do mês de maio e deixou um rastro de destruição impressionante. Falamos muito e muito se há de falar ainda. Os destroços resultantes permanecerão por longo tempo, não só nos bairros devastados, como também no imaginário coletivo. Entre os destroços que remanescem se encontra o medo.

Sim, ficou entre nós um sentimento muito sombrio. Poderíamos dizer que um bloco de medo paira sobre as cabeças e nos toma o coração. Se tentarmos destrinchar o bloco, vamos descobrir que ele está composto por itens diferentes, mas não tem nada de fantasia ou invenção.

O maior de todos os nossos medos se relaciona com os desastres que o futuro pode trazer ainda. Ninguém sabe quando, mas todos pressentimos que voltarão, talvez ainda maiores. A chuva no telhado, de agora em diante, será tomada sempre como nefasto aviso prévio. Falará mais da insegurança do que do aconchego que embala um sono bom. Quem consegue acreditar que passarão décadas antes de novo evento?

Outro medo é de que a recuperação de estradas, pontes e tudo o mais ganhe o estilo dos “puxadinhos”, aquelas enjambrações totalmente provisórias, feitas no calor da hora, e que depois vão ficando para sempre. Ou até que novo desastre escancare sua total precariedade.

Temos medo também de que os discursos sobre ajudas oficiais não passem de discursos. Que pouco entreguem além de belas palavras. Que fique faltando, uma intervenção de longo alcance. Que no lugar de planos sérios, com etapas definidas, cronogramas e execução sólida… tudo sejam figuras de linguagem soterradas embaixo de papeis e formulários e prazos que não se cumprem. E que por fim os dinheiros prometidos escorreguem pelos ralos e ninguém nunca mais lhes conheça o paradeiro.

Temos medo de que prospere a ignorância e que se desperdice a chance de reconstruir com visão de longo prazo, sobre a base do conhecimento disponível e não do jeito como cada um consegue. Temos medo de que a gente não alcance aprender com o infortúnio que tanto sofrimento causa.

Os nossos medos têm história, são reais, se justificam. Somos gatos escaldados. Nossos medos são bem mais que devaneio. O nosso medo tem história. O nosso medo, portanto, não é tolo.

Agora, peço emprestada de Adolfo Bioy Casares uma frase melancólica. O escritor argentino encerrou certa história que contava, dizendo assim: “o medo não é tolo, mas é triste”. Falou isso, quando descrevia um homem a quem faltou coragem para encarar um desafio de vida. Eu trago para cá a mesma frase. Temos muitas justificativas para sentir o que sentimos. Mesmo assim, não deixa de ser triste haver tanta insegurança. Estarmos tristemente tomados de dúvidas e incertezas.

O medo não é tolo, mas é triste.

Texto por Ivete Kist, professora e escritora

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